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Pássaro
Passeriformes é uma ordem da classe aves, conhecidos popularmente como pássaros ou passarinhos.
O esqueleto delicado e leve anima o bater das asas para a magia de voar.
A sua cinética desenfreada percorre os ramos das árvores, os telhados.
As visitas mais próximas são lampejos de cautelosa comunidade ou serões curiosos em esconderijos.
Nervosos, disparam os sentidos aguçados em redor com invisíveis tremuras.
Edificam as suas gaiolas naturais - os ninhos - para se esconderem do frio e da fome dos predadores.
Seres livres e cautelosos da sua tangível delicadeza. São como os rios, os pássaros em devir.
Ao longo da história e em várias civilizações, o pássaro simbolizou a liberdade, a inteligência, a sabedoria, a leveza, o divino, a alma, a amizade. Foram idealizados como mensageiros entre o céu e a terra. As ilusões sustentam a alma como as asas sustentam o pássaro. (Victor Hugo) O livro é um pássaro com mais de cem asas para voar. (Ramón Gómez de la Serna)

Serrote
Um serrote é uma ferramenta de corte usada normalmente para serrar madeira.
Consiste numa lâmina larga com dentes afiados e com cabo de madeira com encaixe para a mão.
Escultor, decepador. Acrescenta novas geometrias ao organismo da madeira.
Através da força do braço, o serrote escava uma linha de corte, eruptindo serrim que vai repousando
nas ranhuras e nos cantos que sustentem a sua leveza.
Persistente, grava nas milhas percorridas pelos dentes cansados o testemunho do trabalho.
Se uma força F é aplicada num corpo que realiza um deslocamento dr, o trabalho realizado pela força
é uma grandeza de valor: W = F . dr (W - work). O serrote é a casa da primeira lei de Newton.
Findo o trabalho, solene, repousa no abandono tranquilo dos arrumos.
A extensão da sua mandíbula ri-se.
Afinal, ninguém no registo civil o confundiu com um pequeno conjunto de montanhas.

Proposta semiótica
O serrote é o diligente operário, escultor do mundo material, ativo substantivo da determinação intransigente do ato de cortar.
O pássaro é a liberdade, a fragilidade, o sensor nervoso das ameaças do mundo e a delicadeza.
O contexto em que se encontram é o acaso.
O brandir do serrote sobre o tronco de madeira, o ruído seco e repetitivo, pulverizando farpas e serrim sobre os punhos do carpinteiro, não seria habitat apropriado para esta simbiose. As variações repentinas de galho, entre incursões esvoaçantes de leveza e a flutuação demorada sobre os ares superiores, também não sustentariam a rigidez acutilante do metal.
O pássaro recria-se nos recantos, acautelando a alegria da descoberta. Longe do barulho ameaçador, da ação assustadoramente material, espalha a sua liberdade nos arrumos onde dorme a mandíbula do serrote.
O serrote - efetivo da utilidade e da materialidade - torna-se poleiro da recriação, do pasmar do pássaro. Este encontro materializa-se e passa a pesar como a fonte de Duchamp, descansado das sua funções materiais para cuidar da alma.
Esta preciosa correlação acontece no abandono tranquilo dos arrumos. O pássaro, curioso, esgueira-se para dentro, perseguindo pela janela o silêncio dos últimos reflexos da luz rasante do fim do dia. Por acidente, repousa sobre a ponte metálica do serrote dormindo.
Este fenómeno equivale-se alegoricamente ao poema. No lugar onde o pensamento livre pousa acima da funcionalidade material da humanidade, perdida nos labirintos das suas angústias. O abandono da delicadeza individual do poema, sem temor, expõe a sua fragilidade num recanto seguro e onde é permitido pasmar como um pássaro pousado no serrote: Paredes de Coura.
Não faria sentido acontecer em Lisboa ou no Porto ou até, próximo, em Braga, onde os pássaros se escondem demasiado alto do frenesim e onde os serrotes raramente sabem dormir.

António Pinto [2017]

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